por Alison Barbosa
“Biblioteca. Casa de telescópios. Abrigo de livruniversos.”
A inclusão da temática de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos e outras denominações (cuja sigla comumente utilizada é LGBTI+) em Bibliotecas – de sobremaneira as de acervos gerais e acesso público – é uma tarefa necessária, mas que encontra demasiada resistência. Considerado um tema sensível, abordar as questões de orientação sexual e identidade de gênero suplanta modismos teórico-conceituais e reforça o lugar de suporte informacional conferido às bibliotecas e demais centros de informação. É uma temática para a qual os Bibliotecários e Bibliotecárias devem buscar instruir-se cotidianamente, atualizando seus repertórios, a fim de evitarem equívocos, principalmente no atendimento in loco a um cidadão ou uma cidadã destes públicos.
Para fins de definição, os princípios de Yogyakarta (2007) citados por Rodrigues e Hernandez (2020, p. 208), descrevem orientação sexual como a “capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas” (YOGYAKARTA, 2007, p. 6, apud RODRIGUES, HERNANDEZ, 2020, p. 208). O mesmo documento considera por identidade de gênero a “experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo […] e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos” (idem). Este parâmetro conceitual é importante para qualificar ainda mais a abordagem aos utentes.
O presente artigo aborda sucintamente o papel da Biblioteca e dos Bibliotecários e Bibliotecárias no exercício profissional de incluir, à luz da prática cotidiana, a temática LGBTI+ como recorte conceitual relevante. Para isso, apresenta algumas experiências do subscrevente em atividades de inclusão das quais esse conceito foi trabalhado em Bibliotecas Públicas, área em que milita.
Conforme dito por Silveira (2014) “as bibliotecas se definem como um espaço de preservação da memória e do patrimônio simbólico, artístico e literário forjados por nossa atividade racional.” (SILVEIRA, 2014, p. 18). Os aspectos culturais inerentes aos grupos humanos constituem de sobremaneira a valoração simbólica e artística desses grupos. Silveira segue discorrendo sobre o papel de destaque das Bibliotecas:
Com isso, se em seus primeiros séculos de existência foram caracterizadas, tão somente, como instituições depositárias, as sucessivas revoluções em torno do livro impuseram-lhes inúmeras outras funções sociais. Na modernidade, além das atividades de coleta, organização, preservação e disseminação do escrito, espera-se que elas participem ativamente do processo de construção sócio-histórica das múltiplas paisagens culturais às quais prestam algum tipo de serviço.” (SILVEIRA, 2014, p. 18)
Trazendo esta conceituação para nosso recorte temático, podemos afirmar que a participação ativa das Bibliotecas Públicas se faz fundamental. Silveira segue no aspecto representativo das Bibliotecas Públicas enquanto lugar de acolhimento, quando afirma que elas “são instituições sociais e, por isso, refletem os enquadramentos políticos, históricos e culturais responsáveis por amparar não só nossas referências intersubjetivas, mas a própria sedimentação da vida coletiva” (SILVEIRA, 2014, p. 214). Para o pesquisador, as funções sociais das Bibliotecas Públicas são demarcadas pelas possibilidades múltiplas de utilização que lhe são impressas pelos seus utentes, com o estabelecimento de ambientes participativos e de inclusão.
Não devemos ser signatários de processos de exclusão às populações LGBTI+, para além das que já sofrem cotidianamente. Para a pesquisadora Flávia Pinto (2020) que realizou um estudo qualitativo que explora as práticas informacionais de pessoas transexuais em seus processos de transição de gênero, as pessoas trans, de sobremaneira, vivenciam algumas contradições, enfrentam diversas barreiras na busca de informações, que são consequências do sistema normativo que marginaliza as experiências que fogem às regras constituídas historicamente e estabelecidas como eternas e imutáveis. (PINTO, 2020, p. 63). Ao contrário, podemos manter nossos locais de atuação profissional demasiadamente acolhedores e inclusivos.
A experiência profissional como integrante da Comissão de Seleção de Acervo – CSA ligada à Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte/MG, para aquisição de livros da rede de Bibliotecas Públicas Culturais, possibilitou a escolha de títulos, utilizando os critérios que regem aquela Comissão, como a diversidade de gêneros textuais, entre Literatura, Artes e Humanidades, o atendimento ao público de distintas faixas etárias, autores e autoras reconhecidos pela crítica literária, com debates e reflexões atuais relevantes no campo da Literatura, das Humanidades e da Cultura em geral e temáticas importantes que contemplem a pluralidade de pensamento e vozes. A CSA promoveu aquisições levando-se em consideração a temática LGBTI+, as questões de orientação sexual e de identidade de gênero, tanto no que se refere a autores e autoras declaradamente LGBTI+, quanto aos assuntos das obras escolhidas, que abordavam esta temática.
Há um exercício necessário e constante de promover a Biblioteca Pública como um lugar de cidadania, de vivência política e comunitária, que ganha força de intervenção social a partir dos suportes informacionais que possui e do poder de decisão que enseja em seus cidadãos. Faz-se presente a importância para os utentes desses espaços informacionais e relacionais, agregados sob a forma de comunidade, para a consolidação da Biblioteca enquanto espaço de apropriação pública.
Esta perspectiva se exemplifica na atividade que foi desenvolvida no sentido de promover o acervo temático LGBTI+ e também proporcionar uma ambiência favorável às discussões atinentes ao tema. Denominada Trans+Vers@s, a atividade foi pensada a partir de uma reivindicação da transexual não binária Edith Augusta e aconteceu bimestralmente ao longo do ano de 2019 na Biblioteca do Centro Cultural Zilah Spósito, região Norte de Belo Horizonte/MG. Constituiu-se em uma roda de conversa, com leitura de trechos de livros, declamações poéticas e apresentações artísticas (teatro, dança, performance), para tratar de assuntos relativos às populações LGBTI+, partilha de vivências e experiências destes sujeitos. Contou com a participação de artistas locais, moradores do entorno do Centro Cultural e de outras porções da cidade, militantes do movimento LGBTI+ local, professores universitários, psicólogos, profissionais da saúde, dentre outros, tornando possível a abordagem desta temática no ambiente da Biblioteca Pública.
Segundo a definição de Jaramillo (2000, apud JARAMILLO, 2011, p. 72), a Biblioteca Pública é uma instituição sociocultural que tem como principal finalidade possibilitar o livre acesso à informação e ao conhecimento de maneira gratuita, contribuindo para a melhoria na qualidade de vida das pessoas e a construção de relações democráticas. Desta forma, é necessário pensar nos Bibliotecários e Bibliotecárias como mediadoras e mediadores da temática LGBTI+, tanto no tocante à constituição dos acervos – sob o princípio da bibliodiversidade – quanto na disponibilização de informações significativas e relevantes com/para/sobre estes públicos.
Incluir não apenas para fazer constar, por um título de um livro dentro de uma lista de compras, por exemplo, catalogar, classificar, guardar na estante e “pronto, assunto encerrado!” Incluir não é apenas indicar a numeração numa prateleira ou o resultado numa busca pelo sistema informatizado, afastando-se rapidamente como se algo contagioso estivesse no ar. Inclusão é acolhida, e a postura acolhedora é algo de que estes públicos mais carecem. Falta inclusão e acolhimento na família, na escola, e muitas vezes as bibliotecas, os livros e as leituras são os refúgios mais seguros que os LGBTI+ tem para alimentarem suas esperanças.
A inclusão engloba as atualizações constantes e necessárias. Numa entrevista de referência, por exemplo, indagar como a pessoa gostaria de ser chamada, ou apenas perguntar seu nome, é uma conduta acolhedora esperada. Os profissionais Bibliotecários e Bibliotecárias devem despir-se de toda e qualquer mácula de preconceitos e julgamentos, embasados em suas próprias convicções, adotando uma postura estritamente profissional e humana.
Referências
JARAMILLO, O. La biblioteca pública, lugar para la construcción de cuidadanía: una mirada desde la educación social. 2011. 270 f. Tese (Doctorado en Educación – Línea de Formación Cuidadana) – Facultad de Educación. Universidad de Antioquia, Medelín, 2011.
PINTO, F. V. M. Transformando normas e padrões: as práticas informacionais de pessoas trans na “reinvenção do corpo”. 2020. 213 f.: il. color. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Ciência da Informação, Belo Horizonte, 2020.
RODRIGUES, J. P. R.; HERNANDEZ, M. de C. O arco-íris atravessando frestas: a ascensão dos debates sobre direitos LGBT na ONU. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasília, n. 32, p. 207-248, ago. 2020. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010333522020000 200207 &lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 23 mar. 2021.
SILVEIRA, F. J. N. da. Biblioteca pública, identidade e enraizamento: elaborações intersubjetivas ancoradas em torno da Luiz de Bessa. 2014. 253 f.: il. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Ciência da Informação, Belo Horizonte, 2014.