Por Cristian Brayner
Conselheiro do Conselho Federal de Biblioteconomia. Pós-doutor em História, doutor em Literatura pela Universidade de Brasília, mestre em Ciência da Informação e graduado em Biblioteconomia, Direito, Tradução, Filosofia e Letras (Língua e Literatura Francesas). Foi agraciado com o Prêmio Casa de las Américas.
Gostaria de, em nome do Conselho Federal de Biblioteconomia, parabenizar a Universidade Estadual do Ceará pela realização da 1. Semana de Propriedade Intelectual, e agradecer pelo convite. Nossa gratidão genuína vem atrelada a uma certeza serena e certeira: a de que toda discussão envolvendo direitos autorais deve incluir o profissional bibliotecário. Afinal, antes mesmo das questões de autoria se tornarem matérias de interesse no campo jurídico, nós, bibliotecários, já nos debruçávamos sobre esse objeto. É muito fácil comprovar a nossa precedência e expertise nesta seara. Primeiro, se é de praxe estabelecer 1710 como o nascimento do direito autoral, ano que passou a vigorar o Copyright Act, editado pela rainha Ana, da Inglaterra, séculos antes os bibliotecários já dominavam um arsenal de ferramentas destinadas a garantir legitimidade as fontes de informação, como os conceitos de fonte primária, secundária e terciária, e um objeto semiótico extremamente complexo intitulado de catálogo, forjado, também, a partir da descoberta de quem gerou a informação, seja um livro ou um tuite. Segundo, incide sobre a biblioteca pública uma multiplicidade é o equipamento cultural mais popular do país, o que a torna particularmente relevante no tema de nossa mesa.
Minha breve fala gravitará em torno da relevância do direito autoral no âmbito das bibliotecas. Primeiro é necessário reconhecer que a legislação impactou fortemente a atuação de nossas bibliotecas. Nas últimas décadas criamos inúmeros mecanismos de produção, cópia e acesso eletrônico de documentos, bem como estratégias de migração de suportes de informação, o que nos afetou, seja bibliotecários, usuários ou instituições aos quais nossas bibliotecas estão vinculadas. Pensemos no balcão de referência e seus desafios diários: posso reproduzir para a minha biblioteca o romance Ponciá Vicëncio, da Conceicao Evaristo, em formato braile, sem a autorização prévia da autora? Posso produzir um catálogo fotográfico ilustrando os bustos e outras esculturas espalhadas por Brasília sem o aval do Governo do Distrito Federal? Incorro em violação aos direitos autorais se fizer uso de uma música durante a mediação de leitura numa biblioteca escolar? Há problema em encenar uma peça teatral infantil gratuita na biblioteca comunitária se o autor da mesma não permitir? E a reprografia de textos monográficos e artigos, está liberado?
Por isso, precisamos todos desenvolver a competência em informação em direitos autorais, conhecendo as vedações, e sobretudo, as possibilidades. No Brasil, o direito autoral, ramo do Direito que trata do uso de bens intelectuais, envolve dois direitos: os direitos patrimoniais, que autorizam seu titular a explorá-la economicamente; e os direitos morais, que incluem três direitos ao autor: ser sempre referido como o criador da obra, manter uma obra inédita ou retirá-la de circulação, e modificar sua obra ou vetar qualquer modificação a ela. Ambos são regulamentados pela Lei n. 9610/1998, alterada pela Lei nº 12.853, de 14 de agosto de 2013, inspirada na Convention de Berne pour la protection des œuvres littéraires et artistiques, assinada em 1886.
Além da Lei e da Convenção citadas, merece ser destacada, ainda, três outras normas internacionais: a Convenção Interamericana sobre os Direitos de Autor em Obras Literárias, Científicas e Artísticas, de 1946, que trata da proteção das tipologias de obras entre os países de nosso continente; a Convenção Universal sobre o Direito de Autor, publicada 1952, que estabelece a tutela de obras publicadas e não publicadas em um país, segundo a legislação do país na qual esteja sendo utilizada; e a Convencáo de Roma, de 1961, que garnte direitos a outros participantes além do autor que contribuíram para a concepção de uma obra, independentemente de sua natureza. Quanto a obras digitais, que estão ganhando grande espaço em nossas instituições, merecem ser destacadas duas legislações: o Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, de 1994, que abarca a proteção para programas de computador e compilações de dados, e a WCT Copyright Treaty, de 1996, que equaliza as legislações vigentes ao universo digital.
O conhecimento dessa legislação nos ajuda a estabelecer uma relação adequada com nossos usuários, editores, fornecedores e empregadores, evitando problemas na esferas ética e judicial. Por razão de tempo, vou me restringir a algumas questões envolvendo a chamada Lei de Direitos Autorais. A Lei n. 9610/1998, embora longa, totalizando 115 artigos, sequer cita a figura da biblioteca, ou seja, as bibliotecas não estão livres das restrições envolvendo direito autoral. Nesse sentido, há, em tese, uma série de limitações as bibliotecas em oferecer determinados serviços, como a reprografia de obras de seus acervos, ou o uso de e-books.
Primeiro, a lei legitima uma prática tradicional entre os bibliotecários, a saber, a citação direta e indireta, ressaltando a necessidade de referenciar a fonte (art. 46, III). Outra questão de maior impacto é a possibilidade de se executar uma música ou encenar uma peça teatral nas dependências de uma biblioteca escolar para fins didáticos, desprovida de pretensão comercial (art. 46, VI). A reprodução de obras bibliográficas me parece ser um dos mais polêmicos. Como a figura da biblioteca sequer é citada na Lei, as restrições acabam nos alcançando, bem como as lacunas explícitas do ato normativo. Por exemplo: um usuário pode reproduzir um capítulo de livro por meio de máquina reprográfica? No Japão, isso só é possível com a autorização do autor. No Brasil, a Lei estabelece não constituir ofensa aos direitos autorais “a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro.” Portanto, a reprografia de obras bibliográficas é possível, desde que atenda a dois quesitos: não tenha o lucro como finalidade, e se restrinja a “pequenos trechos”. O termo em questão é desgraçadamente vago, trazendo dor de cabeça para quem atua em bibliotecas, particularmente as universitárias. De todo modo, não há duvida de que a utilização integral de obras intelectuais sem a respectiva autorização do autor, ainda que com pretensões pedagógicas, fere os direitos autorais. Portanto, não há que se falar em blindagem das bibliotecas quanto a proibição de se reproduzir na íntegra obras de seu acervo.
Notamos, infelizmente, que o bibliotecário brasileiro se equilibra numa corda bamba: de um lado ele se depara com o texto constitucional, que garante a todos os brasileiros o direito de acesso à informação (artigo 5, inciso XIV), direito à educação (artigos 6 e 205) e o direito à cultura (artigo 215), e do outro, os direitos autorais assegurados pela Lei n. 9.610/98. A colisão normativa, nesse caso, é explícita. O que podemos fazer?
Em primeiro lugar, garantir o direito dos usuários à informação a partir dos dispositivos legais da Lei supracitada, em particular a reprodução de itens bibliográficos em formato adequado para deficientes visuais, sem pretensão comercial (art. 46, I, d) e a reprodução reprográfica ou em outro meio de “pequenos trechos” de obras bibliográficas para uso individual, sem fins de lucro;.
Segundo, avançar na discussão em prol de uma nova proposição legislativa que contemple as particularidades de nossas bibliotecas, em particular no ambiente digital. Sugiro algumas:
a) Que a permissão de “representação teatral e a execução musical […] para fins exclusivamente didáticos” não se restrinja ao espaço da escola, mas contemple a biblioteca, independentemente de sua tipologia;
b) Que se estabeleça de forma inequívoca o limite da reprodução reprográfica de obras de seu acervo;
c) Que se preveja a reprodução de obras raras e de fora de circulação, independentemente do formato;
d) Que se determine o fornecimento de cópia reprográfica de obras esgotadas ou artigos de revistas científicas em formato impresso;
e) Que se discuta, com urgência, a criação de novos direitos para as bibliotecas em prol da coletividade, como o uso de obras órfãs e materiais protegidos por direitos conexos e a a importação paralela.
Enquanto não avançamos no universo normativo, podemos valorar os chamados Recursos Educacionais Abertos (REA), termo cunhado pela UNESCO e que abarca um conjunto de materiais voltados para o ensino, pesquisa e aprendizagem, em suporte digital ou outros, estando sob domínio público ou podendo, ainda, serem divulgados sob licença aberta. O primeiro passo, nesse sentido, é conhecer as licenças Creative Commons, que permitem aos detentores de copyright, ou seja, autores de conteúdos ou detentores de direitos sobre estes, abdicar dos seus direitos de criação em favor do público.
Agradeço, mais uma vez, pelo convite feito ao Conselho Federal de Biblioteconomia que se coloca à disposição para tratar da temática em outras ocasiões.